Reconhecidas pelo cultivo e tecelagem com o algodão, comunidade quilombola integra a coleção da FOZ, marca que valoriza o artesanato e as manualidades brasileiras
Em 16 de outubro, primeiro dia do São Paulo Fashion Week, o artesanato mineiro foi um dos destaques da coleção O Conto de Laura, da FOZ, marca que utiliza a moda para revisitar as tradições artesanais brasileiras. Em homenagem à história de sua tia-avó, o estilista alagoano Antônio Castro apresentou uma coleção desenvolvida em parceria Maria Fernanda Paes de Barros, Maria Helena Emediato e com artesãos e artistas populares de Alagoas e Minas Gerais, que entrelaça história e estórias reimaginando conceitos do sertão e elementos estéticos do cangaço.
Localizadas na comunidade quilombola de Roça Grande, na cidade de Berilo, Minas Gerais, as artesãs da Associação de Produtores e Artesãos de Roça Grande – APARG puderam ver pela primeira vez suas produções no maior evento de moda da América Latina, levando à passarela uma tradição local que, até então, vinha perdendo adeptos ao longo dos anos. “Ver o nosso trabalho em um espaço tão importante acaba fortalecendo a nossa cultura e a nossa identidade enquanto grupo que trabalha de forma coletiva e com uma técnica própria que não se encontra facilmente. Além disso, a participação no SPFW abre portas para que consigamos continuar gerando renda a partir de uma tradição que se mantém forte no nosso cotidiano”, revela a Ivone Machado da Silva, artesã e segunda secretária da Associação.
A chegada das artesãs às passarelas começou a ser tecida pela designer e pesquisadora Maria Fernanda Paes de Barros, da Yankatu que, em meio a uma de suas viagens pelo Jequitinhonha, acabou se encantando com as produções que não só carregam símbolos da identidade local, mas também são produzidas a partir de um processo de trabalho incomum que começa desde o plantio do próprio algodão, passando pelo fiar, cardar, tingir e tecer os fios de algodão. Em contato com Antônio Castro, mente criativa por trás da FOZ, a designer passou a articular uma parceria para a produção de peças que trouxeram às artesãs alguns desafios.
“No trabalho com as artesãs o desafio foi adaptar a construção têxtil delas para o vestuário que tem demandas diferentes das peças que habitam o universo da casa. Então, a partir da própria técnica da comunidade, nós propusemos a confecção de um tecido um pouco mais fino, com algumas alterações na dimensão e no direcionamento dos motivos, entre outras informações para adequar a direção dos desenhos ao sentido que tecido seria cortado. Então, acredito que tenha sido um exercício importante de crescimento da técnica para adaptação a outras realidades, o que ajudou a contribuir para ampliar seu portfólio”, afirma Maria Fernanda, que coordenou todo o processo de desenvolvimento com as artesãs.
Acostumado a trazer o artesanato para suas coleções, esta foi a primeira vez que Antônio ampliou seu portfólio para além das técnicas comuns ao artesanato alagoano. Cada vez mais aberto e atento às produções e grupos de outros estados, a experiência em Minas Gerais também lhe rendeu alguns aprendizados. “Na tecelagem de Berilo, entendi que elas desenvolveram uma técnica na qual fazem a sobreposição de fios para a criação de desenhos em alto relevo, o que hoje é o principal diferencial da comunidade e foi justamente o que me chamou a atenção. A partir destes tecidos foi desenvolvida uma família com quatro looks e alguns acessórios com uma linguagem e apelo visual que eu já tinha em mente”, afirma, completa Castro.
Jovens da região voltam a olhar para a técnica
A participação da tecelagem de Roça Grande no SPFW já tem gerado alguns movimentos na comunidade. De acordo com Ivone, quando a associação foi criada eram 80 membros: cerca de 40 artesãos e outros 40 produtores de algodão. Com o enfraquecimento do cultivo do algodão, os trabalhadores passaram a buscar outras fontes de renda, o que representou um afastamento natural dos jovens da comunidade. “À medida que os jovens vêem seus pais e avós com dificuldades para se manter financeiramente a partir do tear, eles começam a perder o interesse e decidem ir embora para outras cidades que lhes trarão melhores oportunidades”, conta ela.
Porém, desde esta nova aproximação com a moda, filhos de artesãos que deixaram a atividade voltaram a tecer, entendendo que a atividade é parte de sua identidade cultural. “
“Mesmo morando em São Paulo há alguns anos, ver o resultado do trabalho me fez pensar que de certa forma eu sou umas das responsáveis por levar esta tradição adiante. É incrível como a moda pode ser um veículo para valorizar o artesanato e a cultura de um povo. A possibilidade de ver a continuidade deste trabalho tão rico em ancestralidade é gratificante e nos mostra que a moda pode ser muito mais do que apenas tendências”, completa Maiane Sales da Silva, que é filha e sobrinha de artesãos.
Tiradentes se destacou nos acessórios
A também designer e joalheira Maria Helena Emediato, do Estúdio LEH, foi a responsável por criar acessórios para a marca. Em parceria com os artesãos tiradentinos Wagner Trindade e Rondinelly Santos, ela criou uma linha de acessórios com cerca de 145 peças que conta com pulseiras, colares, anéis braceletes, cintos, chapéus, pentes, óculos e muitos outros. Outra peça criada por Rondinelly, em parceria com Maria Fernanda, foi a Bolsa Bastidor, que recebeu uma estrutura entalhada entalhada em madeira e o tecido de Roça Grande.
“Compondo o universo criado pelo Antônio, que resgata os excessos e a opulência do cangaço, nós relacionamos isso com os mesmos elementos presentes do barroco mineiro, evidenciando o drama, as imperfeições, o brilho dos cristais, etc. Com isso, em algumas peças, trazemos os arabescos românticos do Nelinho, e o latão embrutecido do Waguinho. O resultado foi um casamento perfeito que é capaz de mostrar o quanto o artesanato brasileiro pode estar no objeto, na decoração e, sobretudo, na moda”, finaliza Maria Helena.